"Eles [os romanos] não eram insensatos, brutos ou violentos, tinham sentimentos e valores, muitos dos quais estão conosco, de forma transformada."
(FUNARI, P. Paulo. A vida quotidiana na Roma Antiga. Editora Annablume, 2003)
Graças às quase 10 mil inscrições parietais que sobreviveram dos últimos momentos da cidade antiga de Pompéia, é notável a pluralidade pertencente às classes ditas humildes. Todavia, é necessário que a compreensão das relações de conflito sociais se estendam à grande oposição entre uma cultura definida como erudita e a cultura popular pompeiana.
A erudição da língua escrita, seguida por suas normas gramaticais e um apelo a métrica de composição contrasta com a irregularidade e flexibilidade de um latim vulgar, seus erros de ortografia e temáticas quotidianas. É errôneo, portanto, afirmar que a arte e produção elitista era vigente, dominante em relação à das massas, enquanto os populares apenas tentariam repeti-la em moldes mal-feitos. Segundo Funari, "cultura não é um apanágio de classe. Pelo contrário, todos os indivíduos são intelectuais, pois são difusores do saber e exercem um papel ativo na organização do mundo social, em termos econômicos, políticos e culturais."
Ao mesmo tempo que o muro possibilitava expressões triviais inscritas em formações primitivas, também funcionava como testemunho de intervenções artisticamente construídas e fruidora de ricas interpretações, o que requereria um mínimo de escolaridade ou conhecimento. Sobre a educação alternativa, Funari conclui que "havia diversos níveis e gradações de instrução e que a educação não se restringia à elite. (...) Por outro lado, as classes populares, os pobres, os escravos e libertos comuns não possuíam o treinamento dos escribas, nem a erudição e familiaridade com o grego que os senhores, mas nem por isso deixavam de dominar aspectos importantes do mundo da escrita."
"Zetema
Mulher levava um filho parecido comigo, mas
Ela queria que fosse meu
E eu queria que meu fosse"
(CIL IV, 1877)
"Nada pode durar eternamente:
ainda brilha forte o Sol e volta-se para o Oceano;
Lua diminui logo após a sua cheia.
Assim, a força dos encantos amorosos transforma-se, com frequência em brisa suave."
(CIL IV, 9123)
Construções poéticas sobre o amor são frequentemente encontrados nas coleções dos parietais pompeianos. Alguns autores conseguem atingir uma maior proximidade às formas linguagem erudita, mas ainda assim, possuem uma essência popular bastante clara. Com se aborda em A Vida Quotidiana de Roma Antiga, "alguns compositores populares, por sua parte, escreviam obras poéticas seguindo regras eruditas, ainda que muitas vezes, seus temas se distanciassem dos padrões da elite. Tratavam de assuntos corriqueiros, das emoções pessoais, da vida nos prostíbulos, ou de trivialidades (...)".
"Canto os lavadores e a coruja, não as armas e o homem."
(CIL IV, 9131)
Produções de certos filósofos e literários conseguiam atingir um certo nível de popularidade na Pompéia antiga. Citações de efeito eram bastante difundidas dentre este povo antigo, gerando assim, uma abertura de reproduções, adaptações e paráfrases nos muros pompeianos. O dito inicial da epopéia Eneida, de Virgílio, "canto as armas e o homem/o varão" se transforma nas palavras de um inscriptor anônimo na parede de uma lavanderia: "canto os lavadores e a coruja, não as armas e o homem". Tentando se distanciar de interpretações óbvias, Pedro Funari percebe este grafite não como um "hino dos lavadores" ou uma propaganda do estabelecimento, mas expõe uma situação histórica implícita: a simbologia das armas e do homem fazem alusão à base política militarista do Império Romano. O historiador afirma, portanto, que "o scriptor nega-se a louvar essa tradição e esse regime, opondo aos seus termos os simples lavadores e sua divindade protetora, a coruja." Uma simples apropriação e recriação de um dito literário consegue de tal maneira atingir outras esferas interpretativas, num nível político-social ao mesmo tempo que semiótico-poético.
Grafite pompeiano de paráfrase, autor anônimo, tradução encontrada na Obra de Funari |
Prova-se, de tal maneira, que para se emitir e captar algum conteúdo inscrito em murais não era preciso pertencer a elite, ou receber uma educação restrita a selecionados. Tampouco era preciso conhecer regras gramaticais do latim erudito. Os simples pompeianos, representantes da civilização romana, conseguiram registrar parietais artisticamente fundamentados e mensagens que infligiam complexos contextos sociais, num latim que lhes pertencia e de acordo com às regras e formas que lhes eram cabíveis. Não existia uma hegemonia elitista, pois o povo encontrou seus próprios modos de expressão, seus meios comunicacionais, como o muro pompeiano serviu. A parede era o canvas do artista popular.
Olá, Lucas. Bacana seu último post. Lucas. Esperamos que você tenha gostado do seu percurso na disciplina.
ResponderExcluirNos vemos no encontro final!
Um abraço,
Cris Lima